quarta-feira, 28 de maio de 2014

Papa adia beatificação para investigar alegado anti-semitismo

Escritos do padre Léon Dehon, fundador dos padres do Sagrado Coração de Jesus, serão agora avaliados por uma comissão
de cardeais
Numa decisão inédita, o Papa Bento XVI suspendeu a beatificação do padre francês Leão Dehon, que chegou a estar marcada para dia 24 de Abril, mandando investigar alegadas acusações de anti-semitismo nos seus escritos. Fundador, em 1877, dos padres do Sagrado Coração de Jesus (SCJ), o caso do padre Dehon será agora reavaliado por uma comissão que o Papa instituiu depois de um alerta dos bispos franceses.
O adiamento da cerimónia foi motivado, em primeiro lugar, pela morte de João Paulo II, a 2 de Abril, e a posterior eleição de Bento XVI. Agora, com a decisão do novo Papa, a causa terá que ser reavaliada. Ainda durante esta semana, o superior-geral dos mais de 2200 dehonianos que existem no mundo, o português José Ornelas Carvalho, deverá dirigir à comissão uma carta a expor os argumentos da congregação fundada por Dehon, soube o PÚBLICO junto do superior da província portuguesa dos padres do SCJ.
De acordo com o padre Manuel Barbosa, os textos do padre Dehon estão publicados, são conhecidos e, por isso, o assunto será "resolvido", acredita o responsável dos cerca de 100 dehonianos portugueses. "Não há nada de especial, haverá um certo empolamento no caso", acrescenta, para justificar o facto de não querer fazer comentários sobre o assunto. "Agora é melhor esperar que a comissão trabalhe", diz o padre Barbosa.
As alegações surgiram com o historiador francês Dominique Durand, que, já em Fevereiro, terá alertado os bispos do país para alguns escritos do padre Dehon alegadamente anti-semitas. No seu Catecismo Social, de 1898, Léon Dehon escrevia que os judeus "mantiveram a sua aversão a Cristo e, em consequência disso, lutam contra as acções da Igreja em todo o lado". Ao mesmo tempo, os judeus "favorecem todos os inimigos da Igreja", escrevia o padre Dehon, de acordo com uma cópia do texto da Conferência dos Bispos Franceses citado pela Associated Press.
Em declarações à mesma agência, Durand contou que a questão surgiu quase casualmente: ao cruzar-se com um bispo, o historiador disse-lhe que a Igreja poderia vir a ter "problemas" com a beatificação. "Os bispos reagiram então muito rapidamente. Entenderam que não era bom que isso acontecesse", explicou o investigador, professor de História Religiosa Contemporânea na Universidade de Lyon III e que já foi conselheiro cultural da embaixada francesa junto da Santa Sé, entre 1998 e 2002.
"Quando se beatifica Madre Teresa, isso significa que a Igreja quer dizer aos cristãos que Madre Teresa é um exemplo", diz o historiador. "O risco de beatificar o padre Dehon é dizer aos católicos que o anti-semitismo não é uma questão séria." Considerando assinalável a suspensão, Dominique Durand diz que, uma vez decidida, a beatificação "vai sempre até ao fim". "Isto é completamente invulgar."

Afirmações têm que ser lidas no contexto da época
De acordo com o jornal La Croix, Dehon escreveu que o Talmude, livro que fixa a literatura judaica rabínica dos seis primeiros séculos da era cristã, é um "manual do bandido, corruptor e destruidor social" e que o anti-semitismo é um "sinal de esperança". Segundo o mesmo jornal, o superior dos dehonianos em França contesta as acusações, dizendo que as afirmações tinham que ser lidas no contexto da época em que foram escritas. "O padre Dehon era um homem cheio de amor", afirmou o padre Joseph.
Léon Dehon viveu entre 1843 e 1925, numa altura em que o anti-semitismo cresceu na Europa. Foi ordenado padre em 1868 e fundou a congregação religiosa com o objectivo de ajudar os mais necessitados e de suprir as necessidades pastorais da Igreja Católica.
Os escritos de Dehon tinham já sido aprovados por duas vezes, em 1960 e em 1971, por um grupo de teólogos. A comissão agora constituída é composta pelos cardeais José Saraiva Martins, o português que preside à Congregação para a Causa dos Santos; Paul Poupard, francês, que preside ao Conselho Pontifício para a Cultura; Georges Cottier, teólogo pessoal do anterior Papa, João Paulo II; e o francês Roger Etchegaray, ex-presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz. A primeira reunião realiza-se na próxima sexta-feira.

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